CRISÁLIDAS
(2022...2023...)
Ricardo França de Gusmão
27.12.2022
.
Em meio a transformação da crisálida
Do calendário tempo fatiado em dias
Meses das mortes dos recortes
Temporais dos períodos de tempo
Anuais
Às vésperas do nascimento de 2023
Abri a porta do quarto dos meus pais
De madrugada
Para conferir se eles respiravam
Pois que sim
Só então
Pude dormir
E essa constatação
Foi equivalente
A uma taça de vinho:
Eu não era órfão
.
É aterrorizante ganhar o presente
Da consciência crítica
E entender que o dia seguinte
Não encerra o que passou
Mas lhe concede o armistício da ingenuidade
Como se a vida fosse minuda
De um botão de start
Quando se começa tudo novamente
Mas quando até a esperança mente
E tenta esquartejar o corpo
Temporal da continuidade
Percebo que a soma dos calendários
De todas as décadas e séculos
São náufragos, navios fantasmas
Imbuídos pela falsidade ideológica
Do recomeço
Mas que associados em formação
De quadrilha
Repetem ad eternum
O mesmo crime continuado
Sem prescrição
.
Não, 2023.
Não haverá nada de novo novamente.
Porém a contínua promessa
De ser tudo novo de novo
Novamente.
2023, bola da vez, você mente
Com a velocidade que a velhice
Amadurece a minha carne.
Quer fogos de artifício?
Fogos de artifício são simulacros
De artifício
Do espetáculo da renascença.
Não há um vão, não existe diferença
Entre o ser humano,
A fauna, a flora
E o Planeta.
Somos todos o mesmo Planeta
Com uma certa vantagem competitiva
Cromossomial
Entretanto sopro de vida
Inspiração, expiração
Da mesma brisa
Que há no fluxo muscular
Dos furacões.
.
O tempo... Ah, o tempo.
Sim. O tempo é inocente.
O tempo engarrafado areia
Na ampulheta,
No silício dos relógios digitais
E na engrenagem dos cucos
Que anunciam as horas
Nas paredes das casas
Dos Pinóquios agregados.
A ‘hora da virada’
É uma sopa, um caldo,
Onde está o passado, o momento
Presente em agonia
E o futuro em trabalho de parto.
E as avós e as mães
Remexem com colheres de madeira
Da esquerda para a direita
O tempo que passa, as épocas,
E o que no calendário está fatiado
Nesse instante é substância
E densidade
De um único mingau
No qual submersos estão
Maternidades, cemitérios
E fogos de artifício.
.
O tempo é uma constante.
Não deposite fé no cadafalso
Da expectativa.
Flores ao mar serão dissolvidas.
No ano vindouro continuará
A sua dívida.
O seu desespero de amor.
A alegria da chegada
E a dor da partida.
Novos golpes digitais
Corrupções genuinamente
Nacionais
E conflitos internacionais
Seguidos do aumento do preço
Da gasolina,
Do alface,
Do pescoço de galinha.
E mesmo nos instantes
Contagiantes de cegas felicidades
A dor e o adeus
Já estão geneticamente preparados
No que chamamos de destino.
Esse bode expiatório
Que eternamente será
Um eterno cretino.
.
E o próximo menino
Ou menina
Será você reencarnado
Ou reencarnada
Com a missão de gerar audiência
Para a mesma novela
Que recomeça
Recomeça
Recomeça.
E nesse funil — dirão a você, novamente —
Que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil.
Caberá a você se submeter
Ao calendário das narrativas
Ou não acreditar que comer uvas verdes
Na passagem de ano
Não fará a sua jornada menos dolorosa
Por mais que suas retinas tenham
Refletido
Todas as paisagens mais belas
Do mundo.
Precisamente porque todas as retinas
De todas as pessoas que habitam
Este seu mesmo mundo
Não moram no seu pequeno Planeta.
.
Não acredite, portanto, no poder
Artificial dos fogos de artifício
No réveillon.
Não acredite, portanto, nas notícias
On line
E nas historinhas comoventes de superação
Do marketing de conteúdo.
Mais uma vez, dessa vez,
Eles estarão a serviço dos interesses
De 2023.
Vá morar em uma cabana.
Acenda uma fogueira.
Mas desconfie das cabanas
Com paredes pré-moldadas
E das fogueiras que acendem
Via remoto
Automaticamente.
A fogueira acesa boa
É aquela que dá trabalho
Para acender.
Assim como o esforço
Que a borboleta faz
Para evoluir da crisálida
Na missão de nascer.
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