Jingle Bell
Por Ricardo França de Gusmão
É tempo de natalismo nos rincões da América Latina.
O bom velhinho made in Brasil aparece de barba branca
nas Tevês-Digitais-Sensacionais-Caras-Demais de 34 polegadas.
Seu cachê, previamente combinado,
Ajudará a completar o benefício do INSS
Que ele pega na fila da agência inclemente
ofício sacrifício
que ele não merece
(nem a gente).
A respeito da ocasião
O presidente-estagiário da Associação
Comercial
Em entrevista ao repórter no
telejornal
projeta sólidos lucros líquidos
libertando nervosas gar-ga-galhadas
seqüenciais entrecortadas.
- Sai desse corpo! Desconjuro! Bicho do capetalismo!
A realidade se refaz envernizada de egoísmo,
sem cheiro,
sem gosto,
sem asperosidade,
sem barulho,
sem carinho:
anti-emocional.
O papai Noel brasileiro e o comerciante histérico
São habitantes hilariantes de um mundo
sintético,
protético,
desértico,
de plástico,
comercial,
produzido
Na Coréia, em Taiwan, na China comunista,
Em território americano do norte
E na Zona Franca de Manaus.
É tempo de Natal, mas não neva em Pernambuco,
Ou no Ceará. Não neva em Aracaju ou em Copacabana.
Os publicitários criaram o milagre da neve tropical,
A neve inconsciente coletiva
Que faz parte das decorações das lojas.
Encantados, conseguimos imaginar a neve anti-solidária,
E sentimos um frio seco
Sob um sol de 40 graus.
Mas isso não é magia de Natal.
É efeito colateral de publicidade
Em doses acima do limite suportável para o consumo
Do consumidor humano do Terceiro Mundo.
É tempo de presentear eletrodomésticos,
Brinquedos ideológicos,
heróis americanos e japoneses
geneticamente modificados,
bandidos iraquianos e afegãos destroçados,
CDs novos e antigos do Roberto Carlos,
Aparelhos celulares que fotografam
e cosméticos antiéticos para as quatro estações
Comprados em carnês de até 12 prestações.
Há um espírito promocional, uma heresia,
Que perfuma os shoppings das capitais
E os jornais não publicam mais
a morte dos enfermos nos hospitais.
Cientistas patrocinados pelas casas Bahia
dizem que a estrela de Belém passará e cairá
Em tira teima para o êxtase dos telescópios
Durante uma liquidação de telescópios.
Eu, que comprei um telescópio,
Otário,
não enxergo nada pelo orifício de olhar.
Agora, jaz, solitário
Ex-possuidor do meu décimo terceiro salário,
ser microscópio com contas a pagar,
cidadão feito de bobo com a cara pálida de superfície lunar,
insisto no ópio natalino:
aumento o som
da televisão
e assisto a Missa do Galo,
sonho descontextualizado
e viro novamente um menino.
Jesus é o grande homenageado da noite.
Todo ano renasce menino bom
Para o nosso bem.
Lá fora, na cidade dos meninos sem,
Na cidade de Deus sem amém,
Dormem outros meninos de sonhos açoitados
E nascem outros meninos
brancos,
negros,
violentados,
E nascem outros meninos louros,
orientais,
transgênicos,
Nascem mais, querendo alimento e brincadeira
Num mundo que vende bala
Num mundo que atira bala
Onírica bala entre a vida e a morte
Flutuante bala no Natal dos pobres
Caríssima bala na ceia dos ricos.
Merry Christimas!
Hoje, nasceu um menino para o nosso bem:
Um Jesus bonequinho de plástico
Lançado em versão popular
Com a barba do Luís Inácio
Para o menino do povo
Apertar.
Um menino educativo aperfeiçoado
Feito com vento por dentro
E uma cruz acessória também popular,
Uma cruz igualmente de plástico, inglória,
para o menino do povo
pregar.
Na caixa há um rudimentar martelo,
só não há o prego, objeto de aço para perfurar.
O preço desse prego
Em prestação de crucificar,
o pai povo cego vai ter que pagar.
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