(A degradação de uma sociedade)
Ricardo França de Gusmão
Década de 80 até o momento
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Algo aconteceu que o noticiário não disse.
Uma tragédia sem novela nevega no ar.
Uma violência no ar vaga acesa.
A cidade repleta desperta um deserto inusitado.
O asfalto está úmido de choro.
E o ônibus que não vem,
e a solidão que aperta...
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Algo acontece.
Nesse exato momento, algo acontece.
Não é rima, música, alegria.
Amor certamente não é.
Meu Deus, o que será ?
A morte será ?
Um incêndio ?
Um crime ?
A loucura será ?
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Ambulâncias nas ruas,
bombeiros, radioparulhas...
A sirene geme geme geme geme...
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Passaram...
A socorro de quem ?
Sobrou alguém ?
Que lâmina ?
Que punho ?
Que decisão acabou com o mundo ?
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O Semáforo!
As cores estão descontroladas!
Vermelho/verde/vermelho/verde
— amarelo—
verde/vermelho/vermelho/vermelho
Não!
Estava verde!
Morreu o distraído,
o bêbado,
o daltônico,
o cego!
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Pega o trem!
Pega o trem!
O trem é um desvairado!
O trem matou mais quatro!
— Quatro trabalhadores que enlouqueceram
praticando surfe ferroviário.
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Que confusão é aquela na esquina?
— Executaram o penúltimo taxista,
e o que sobrou está fazendo manifestação.
Ele tem uma arma na mão!
— Seu moço, não atira não!
Não fui eu quem matou o morto!
Deixa eu completar 10 anos,
não sou o culpado do caos!
A sociedade é competitiva!
Cuidado com a bala perdida,
a bala sem morto fixo.
A AgKá sem destino
e a Aerrequinze que pega menino.
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É preciso revestir o peito!
Um crucifixo no peito!
Só isso é que pode dar jeito
e parar bala bandida!
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Mataram o chinês no Metrô.
O japonês morreu no bondinho.
— Amor, não vá pelo túnel,
lá a escuridão é completa!
Não siga a seta amorzinho,
cuidado com a estrada deserta.
A vida é uma linha reta
entre a favela e o mangue!
A seta aponta para a Linha Vermelha
de Sangue!
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Cadê o batuquetuque da Escola de Samba ?
O Exército mandou parar.
Fez acampamento no monumento do tamborim
dizendo que ali não era lugar
pra negro ficar cantando tão alto assim.
Dizem que a culpa é da maconha!
— Ei, sargento, não olha desse jeito pra mim.
Eles estão atras da cocaína!
— Mas precisa revistar a menina pelada ?
— Seu soldado brasileiro, pra que a cara pintada ?
— Quero saber quem é o herói que nos protege!
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Para onde vão os homens?
Por que o prefeito ri tanto ?
Por que o presidente tanto viaja ?
Governador, alguma coisa, à noite, dói no senhor ?
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Um grito!
Um grito é a escapatória!
Que Brasil será este ?
Sofro de insuficiência respiratória.
Tem um monstro dentro de mim que ronca a noite
mas o Brasil não acorda!
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Acorda!
Aponta!
A ponta da corda
não tem enforcado!
Os condenados estão livres
gozando de liberdade inconstitucional!
Tem um doido por aí
que não é normal...
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A Bósnia explodiu a Sérvia ?
A Sérvia explodiu a Bósnia ?
Os estados Unidos explodiram com os dois ?
Quem explodirá depois ?
O meu amor ?
A televisão ?
O Afeganistão ?
Ou o Itamarati ?
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Coitado do garoto que vende bala...
É mais um ramo de amor perdido,
mais um talo embotado de dor.
Escapou do aborto e virou crime
um acidente que aconteceu...
Passa mercúrio na dor, menino,
passa mercúrio na dor...
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Que sofrimento é esse que paira ?
Que desespero é esse que mata ?
Explica essa dor Severino,
de dor entende o nordestino...
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Uma resposta antes que seja tarde!
Que coisa é essa que tanto arde ?
Agrotóxico ? Radioatividade ?
Que lamento é esse que invade ?
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Expliquem a dor das entrelinhas,
o silêncio do radialista,
do locutor de televisão,
dos meios de comunicação!
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Expliquem os motivos da guerra
essa fera que enterra, elimina,
ensina e assina a sina assassina
que impressiona, domina
e não diz nada!
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Expliquem os argumentos da dor,
da violência nas estatísticas,
das mãos repletas de facas,
do silêncio que persiste na escada!
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O medo tem a tragédia na temperatura.
Um doloroso frio que o termômetro não acusa.
É preciso interromper o medo!
O medo da próxima notícia!
É preciso extrair do medo
POSSIBILIDADES DE CURA!
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Um diálogo vale ouro agora.
Antes que a vela apague
e com ela divague o mundo!
Um instante de consenso antes da degradação total da palavra!
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Um plebiscito!
Tragam poetas para o plebiscito!
Antes que o silêncio fique de vez cratera!
Antes que o revólver alinhe a mira, o tiro!
O TIRO DEFINITIVO!
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Resta saber se ainda há tempo.
O ar está impregnado de pólvora!
Se as Igrejas estiverem fechadas
Tentemos pelo telefone celular
avisar para o dono das coisas
que topamos começar novamente...
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O míssil!
O míssil no céu do mundo inteiro!
O soco sem paradeiro!
O míssil!
O míssil!
O míssil!
O míssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss
ssssssssssssssssssssssssssssssssssssss
ssssssssssssssssssssssssssssss
ssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss
sssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss
sssssssss...........................
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............. e eu que nunca fui pai,
que nunca amei ninguém de verdade,
eu que fui interrompido,
bruscamente interrompido
por um estampido de guerra,
eu que não tinha nada,
sequer farda eu tinha,
ganhei o esquecimento...
A ambulância agora volta.
A sirene geme para mim.
Geme um lamento sem fim.
Me recolhe, eu sem dono,
eu oco, já vazio.
Eu, desespero de uma população inteira,
virei tentativa ausente,
habitante dos becos
das consciências humanas...
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