VELOCIDADE DE TARTARUGA X CÓLERA SALIVARES
Ricardo França de Gusmão
18.4.2022
Mais uma historinha do canto da memória. A Escola Municipal Rodrigo Otávio Filho, em Vaz Lobo, na Zona Norte do Rio de Janeiro, onde me alfabetizei e cursei o antigo ginasial, tinha a estrutura verticalizada. Eram três andares de escadaria de cimento, em vários lances até o último andar, que davam acesso às salas de aula. Isso lá para os anos 70, mas continua sendo assim, com tintas novas em suas paredes.
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Eis que um dia... Eu – que devia ter menos de 1 metro de altura, e cerca de 7 anos de idade, vestido de camisa de gola branca, bolso com brasão do município do Rio no peito e calça azul de brim, descia na velocidade de uma mensagem de ‘zap zap’ rumo ao térreo: era hora do recreio e as minhas merendas preferidas eram arroz com peixe e macarrão com salsicha. Naquele dia, não sabia qual seria o cardápio.
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Quando cheguei no último lance de escada — que deveria ter cerca de 20 degraus — ‘trovoa’ uma voz de mulher general vinda do interior da sala da secretaria:
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“MENINO!! DESCE ESSA ESCADA DEVAGAR, MENINO!!”
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Confesso que o tiro atingiu meus ouvidos em cheio, porém (a mulher gritadeira, cujo cargo de diretora escolar lhe concedia o tal direito do excludente de ilicitude) não conseguiu entrar em meu sistema nervoso, não me abateu, nem me neutralizou. De imediato articulei um ato de desobediência civil escolar e inverti a velocidade do meu deslocamento ao inverso total daquele tempo latifúndio.
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Bom, em outras palavras, fui devagar. Devagar mesmo. Tipo sem pressa. Subtraí um pé por degrau e somei meus dois pés a cada degrau em lerdeza de bicho preguiça em caminhada com tartaruga. Sim. Mesmo sabendo que ainda estava sendo monitorado, tartaruguei. Mas preparado contra o ‘soco retroativo do primeiro grito’. E, enquanto todos os outros estudantes passavam por mim, desviando do meu corpo em ‘slow motion’, na intenção do refeitório, naquele instante — e naquela idade — só pensava em sacanear o ‘sistema’ da trovoada.
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“OLHA SÓ, PROFESSORA! OLHA O QUE ESSE GAROTO ESTÁ FAZENDO! ESTÁ DESCENDO DEVAGAR DE PROPÓSITO, ISSO É UMA INSOLÊNCIA!”
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“MENINO, QUANDO VOCÊ ESTIVER AQUI NO CHÃO, VEM DIRETO PARA A DIRETORIA! ESTÁ ENTENDENDO, MENIINO!"
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Então passaram a ser o estrondo de um raio e o outro, da primeira trovoada. Os dois se energizavam e, mais tarde, compreendi que esse foi o primeiro ‘dínamo’ de relações humanas interpessoais que eu havia criado. É claro que, a partir dessa ordem, o tempo de cada passada passou a ‘lentidar’ ainda mais, como o peso de plumas...
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E eu percebi que essa leveza de desconforto temporal irritava a ‘autoridade da pedagogia em tempos de regime militar’. E essa conclusão me ocorreu recentemente. Já na aposentadoria. Demorou também, não é mesmo?
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É claro que não me lembro bem qual foi o ‘castigo’ pelo atrevimento contra as ‘baionetas’ daquela sala sombria chamada de secretaria. Raspando um pouquinho mais minha recordação, lembro que senti n’alma a “insustentável leveza do ser” por ter respondido de imediato à injusta agressão e ao abuso de autoridade. A insolência intelectual contra todo tipo de poder acima do tom, a partir daquele dia, uma espécie de mantra.
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E ofereça um guardanapo para a boca que grita limpe suas insígnias salivares. É assim que se guerreia, nas trincheiras das escadarias. Desestabilize o oponente: use a cólera dele com embates psicológicos. Foi assim que eu fiz, quando era criança.
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